O trabalho de pesquisadores brasileiros e canadenses foi focado em pacientes de alto risco, com comorbidades. Além disso, o protocolo do teste previa o uso logo no início da inflamação causada pelo novo coronavírus.
UM ALERTA: A fluvoxamina é um remédio usado para tratar depressão, TOC (transtorno obsessivo compulsivo) e transtornos de ansiedade. O medicamento só é vendido com receita controlada, foi usado sob supervisão médica nos testes e os pesquisadores alertam que os resultados NÃO devem ser usados como justificativa para qualquer tipo de automedicação.
Apesar dos resultados serem considerados promissores, mais estudos e protocolos são necessários para definir, entre outros pontos, quem se pode se beneficiar do remédio, com qual dosagem e por quanto tempo de uso.
Contra tempestade de citocinas
Apesar de inicialmente ser uma medicação utilizada para doenças psiquiátricas, a fluvoxamina pode agir diretamente nas chamadas “tempestades de citocinas”. Elas ocorrem quando os pacientes com Covid ficam gravemente doentes porque seus sistemas imunológicos acabam se descontrolando durante a resposta à infecção.
Citocina é o nome geral dado a qualquer proteína que é secretada por células e que afeta o comportamento das células vizinhas, quando encontram os receptores adequados.
De acordo com os pesquisadores, a pesquisa demonstrou que o remédio também tem propriedades anti-inflamatórias que foram eficazes contra os efeitos da infecção pelo Sars-Cov-2. Na prática, a fluvoxamina não ataca o vírus em si, mas ajuda na “moderação” da resposta imunológica.
A fluvoxamina é usada originalmente para tratar depressão por atuar sobre a serotonina, que é um neurotransmissor, substância química produzidas pelo neurônio e que regula o humor e a liberação de alguns hormônios. Mas é sabido que os medicamentos também podem ter impactos em outras áreas do corpo além daquele para o qual foi desenvolvido.
Para atuar contra a Covid-19, os pesquisadores apostaram em outra forma de ação da fluvoxamina. Além de agir sobre a serotonina, ela também também estimula receptores que fortalecem a membrana celular, levando a uma redução das inflamações.
"Ela não ataca o vírus em si, mas ajuda na “moderação” da resposta imunológica. Ela vai lá na superfície da célula e ativa uma proteína que consegue bloquear essa resposta citocínica. Então a fluvoxamina faz essa modulação para que a resposta imune seja somente a necessária e aí evita a chamada ‘tempestade de citocinas’”, explica Gilmar Reis, coordenador do estudo aqui no Brasil, diretor da divisão de pesquisa da CARDRESEARCH e professor adjunto do departamento de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas).
A pesquisa foi realizada no Brasil, em 11 cidades do estado de Minas Gerais. O ensaio clínico começou em janeiro de 2021. Ao todo, 1.497 pacientes com Covid confirmada participaram. Destes, 741 receberam a fluvoxamina e 756 ficaram no grupo controle, e receberam placebo.
Foram priorizados os pacientes que ainda não tinham sido vacinados e tinham pelo menos um fator de alto risco, como obesidade e hipertensão arterial. A idade média dos participantes ficou em torno dos 50 anos, sendo que 58% eram do sexo feminino.
Na análise, os pesquisadores observaram as taxas de complicações destes pacientes com Covid, avaliando a progressão da hospitalização ou a permanência prolongada no pronto-atendimento.
Dos 741 participantes que foram tratados na emergência com a fluvoxamina, 79 precisaram de tratamento médico por mais de seis horas no pronto-socorro ou foram hospitalizados, enquanto no grupo controle, que recebeu o placebo, esse número subiu para 119. Ao longo do estudo, os pacientes receberam a medicação por 10 dias, ao custo médio de R$ 100.
Os dados também demonstraram redução na taxa de óbitos entre os que tomaram pelo menos 80% das doses da medicação. Enquanto no grupo que recebeu a fluvoxamina foi registrada uma morte, no grupo controle, que recebeu o placebo, foram registrados 12 óbitos.
“Esse é um dado muito importante, mas ainda olhamos para ele com ressalvas. Se o paciente, tomando o medicamento, tem a chance de mortalidade 90% menor, é bem possível que ele também tenha um papel importante na redução das complicações. Se tivéssemos continuado o estudo para 2.500 pacientes, talvez, tivéssemos mostrado isso melhor, mas no cenário atual da pandemia, achamos que não era ético continuar coletando dados só pra ter esse desfecho final”, pondera Reis.
A pesquisa foi realizada em parceria com os pesquisadores Edward Mills, Lehana Thabane e Gordon Guyatt, da Universidade de McMaster, no Canadá. Juntos, eles formaram no ano passado a plataforma de pesquisa “Together” que vem testando vários medicamentos durante a pandemia, entre eles, a hidroxicloroquina e a ivermectina.
Para os coordenadores do estudo, uma das maiores vantagens da fluvoxamina é o preço. Conforme o tratamento proposto para a Covid-19 no artigo, que seria o de ministrar 100 mg duas vezes ao dia, durante 10 dias, o custo seria de aproximadamente R$ 100. Ou menos, se utilizado em larga escala, em nível nacional, por exemplo, em contratos negociados com grandes laboratórios.
Por isso, para Edward Mills, da Universidade McMaster, esta é uma descoberta de grande impacto, com evidentes benefícios para a saúde pública.
“A fluvoxamina é muito mais barata do que os anticorpos monoclonais e é de fácil administração, pode ser utilizada pelo próprio paciente, em casa. Vai ser possível aproveitar toda a estrutura de produção que já existe, para um medicamento que já é utilizado. Nós testamos diversos medicamentos na plataforma TOGHETER justamente porque é importante reposicionar estes que já estão disponíveis e têm perfis de segurança bem compreendidos, quando demonstram bons resultados para a Covid-19”, pontua Mills.
Vale ressaltar que este não é o primeiro antidepressivo reposicionado, no jargão científico, para tratar de outras doenças. A própria fluoxetina, por exemplo, também passou por esse processo quando foi descoberto o seu potencial antibacteriano.
O próximo passo agora, segundo os cientistas, é testar a interação da fluvoxamina com outras medicações. “Nós vamos continuar os estudos no Brasil, nos mesmos centros de pesquisa, mas agora aliando a fluvoxamina à outras substâncias, como corticóides inalatórios, a própria fluoxetina e a budezonida, por exemplo, para tentar entender algumas questões que ficaram em aberto”, adianta o pesquisador canadense.
Posicionamento da OMS e debate
Nos últimos meses, várias autoridades de saúde vêm acompanhando com cuidado os resultados que vêm sendo divulgados, e questionando possíveis lacunas que ainda precisam ser exploradas.
Em agosto deste ano, portanto antes da divulgação do atual estudo, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) emitiu um parecer concluindo que ainda não haviam dados suficientes para comprovar a eficácia dessa medicação contra a Covid, e enfatizando que os estudos precisam avançar.
Em nota, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) informou que o relatório mais recente emitido sobre a fluvoxamina pela entidade é de 1 de outubro de 2021 e inclui, entre outros trabalhos, o artigo anterior dos pesquisadores Gilmar Reis e Edward Mills, publicado em agosto deste ano.
Segundo o documento, as evidências até então apresentadas sobre o potencial uso da fluvoxamina para o tratamento da Covid-19 apontaram que, para pacientes que apresentam quadros leves da doença, a medicação provavelmente reduz as hospitalizações e não aumenta, aparentemente, efeitos adversos graves, mas ainda são necessárias mais pesquisas sobre a utilização dessa medicação.
Para Otávio Berwanger, diretor da Academic Research Organization (ARO) do Hospital Israelita Albert Einstein, o estudo foi bem desenhado, mas ainda é preciso avançar em alguns pontos, entre eles, entender se a fluvoxamina ajuda a reduzir a taxa de óbitos, se também funciona para pacientes assintomáticos da Covid-19, definir qual dosagem deve ser administrada e esclarecer como ela reage diante das variantes, como a Delta.
“O estudo avança no nosso conhecimento em relação à fluvoxamina, mas a gente só vai entender tudo isso quando a gente tiver a totalidade dos estudos, são vários grupos. Até pela época que o estudo foi feito, eram pessoas não vacinadas, não completamente vacinadas, então isso é aplicável para uma pessoa que recebeu as duas doses? Ou que recebeu agora uma dose de reforço, no caso do idoso que pegou Covid, o estudo não responde isso, pela época que foi feito. Quer dizer, essas drogas que estão finalmente dando certo no paciente do ambulatório podem ser combinadas ou uma outra medicação, qual o melhor esquema terapêutico?”, questiona Berwanger.
Outro ponto importante, ressalta o pequisador, é que este é um medicamento que requer prescrição e acompanhamento médico. “Não é uma medicação afeita à auta medicação, que as pessoas podem ir na farmácias e sair tomando de qualquer forma, é preciso ter cuidado”, alerta Berwanger.