Contrária aos ataques russos na Ucrânia, a psicóloga e professora Alina Ortega, de 32 anos, nasceu e cresceu na capital da Rússia, Moscou, e hoje acompanha do Brasil o avanço das tropas russas por meio de notícias de amigos e familiares que vivem naquele país. “Acredito que teríamos como resolver os problemas de uma forma diplomática”, diz. “A maioria da população não apoia essa guerra, meus amigos estão chocados, com medo, abalados.” A jovem conta que os pais vivem em Moscou e a irmã, que está em São Paulo, ficará mais tempo do que o previsto em território brasileiro.
“A maioria das pessoas não se manifesta por ter medo de ser reprimida. Uma amiga saiu sozinha com um cartaz e a polícia pediu a ela que não ficasse tão visível.” O medo crescente da população se justifica: na sexta-feira (4), foi determinada a proibição do uso do termo “guerra” para se referir aos conflitos. O emprego da palavra passou a ser considerado crime, com punição de até 15 anos de prisão. “As pessoas percebem que o que está acontecendo é uma catástrofe e tentam não pensar sobre isso”, diz Alina. As gerações mais novas, para a psicóloga, são mais conscientes em relação a temas como igualdade, violência e gênero.
Quem vai às ruas para se manifestar contra a guerra são, majoritariamente, mulheres jovens e estudantes. “Não são protestos masculinizados”, afirma Svetlana. A socióloga explica que as grandes cidades, como Moscou e São Petersburgo, têm mais acesso às fontes de informação alternativa. “Essa população consegue se informar e se mobilizar melhor”, afirma. “Já nas cidades com menor poder aquisitivo as pessoas têm menos acesso a uma diversidade maior de informações.” Nesses locais [grandes cidades], as mulheres mais jovens são, segundo a pesquisadora, mais politizadas. “Elas não conseguem aceitar valores mais tradicionais, não querem somente se casar ou ser uma extensão do marido. Isso faz com que elas sejam mais ativas na oposição ao governo”, explica.
A divisão do trabalho de acordo com o gênero, explica Svetlana, estrutura a sociedade russa. Segundo ela, as russas são condicionadas a cuidar dos filhos e executar tarefas domésticas. Além disso, há ainda uma forte despolitização entre as russas de outras faixas etárias. “Isso ocorre como uma reação à politização que havia na União Soviética. Muitas lutavam pela educação pública, emancipação sexual. Mas, nos anos 1970, houve uma acomodação, as pessoas começaram a se desmobilizar. Hoje, muitas mulheres com 40 anos ou mais são despolitizadas, mais vulneráveis à propaganda estatal."
A repressão na Rússia e em alguns países vizinhos, como Belarus, aumentou consideravelmente nos últimos dias. A representante da embaixada deste país no Brasil afirma que cresce a quantidade de presos políticos. “Muitos deles são mulheres e foram detidos por terem protagonizado protestos”, conta Volha. Segundo ela, ir às ruas em Belarus, país aliado da Rússia, tornou-se algo arriscado. “Muitas mães que não sabem se os filhos com 18 anos serão enviados à guerra estão com medo. Ver um filho enviado para a morte é algo brutal.”
Ela lembra que, há pouco mais de uma semana, algumas mães de militares se mobilizaram pacificamente, sem gritos nem bandeiras empunhadas, e ainda assim foram detidas pela polícia. Volha condena o apoio do presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, a quem se refere como “ditador”, devido, entre outros atos, ao estreitamento de laços com a Rússia. “Tenho parentes e amigas que estão em Belarus que tiveram que fugir para a Ucrânia. Em Belarus, as mulheres têm protestado em todas as cidades.” Entre as amigas que deixou no país, Volha conta que uma delas viu as duas filhas receberem pena de prisão por 15 dias após se manifestarem. Outra, diz ela, lhe confidenciou que teve sorte por ter filhas, e não filhos — assim não teria que vê-los enviados à guerra.
Não são apenas as mães de soldados que têm enfrentado as consequências dos conflitos. Mães de crianças russas que vivem em outros países sofrem os efeitos indiretos do confronto. A Rússia é o quarto país com mais migrantes pelo mundo. São mais de 10 milhões de russos fora do país. “Existem muitas russas na diáspora preocupadas com a desinformação, com filhos sofrendo xenofobia nas escolas”, diz a socióloga. “As mulheres estão começando a se organizar em seus países para que as instituições de ensino conversem com as crianças e evitem a russofobia. A reprodução de comportamentos xenófobos não é solução em nenhum momento.”
Enquanto mulheres russas tentam dizer ao mundo — por meio de manifestações com cartazes, bandeiras, gritos, lágrimas no contato com os filhos ou até mesmo por meio do silêncio — que são contrárias à guerra, ucranianas resistem aos ataques e se empenham na luta pela sobrevivência. “Há uma grande diferença em relação às preocupações de russas e ucranianas”, pontua Svetlana. “Na Ucrânia, um país multicultural, as mulheres estão pegando em armas e saindo em defesa de seu país, ameaçado pelo imperialismo russo”, afirma. “Muitas se recusam a deixar o país e vão ajudar os companheiros nos batalhões.”
Além da luta no front de guerra pela sobrevivência, outro papel destinado às ucranianas é o trabalho do cuidado, tradicionalmente atribuído às mulheres. “Elas organizam a saída das cidades com os filhos e se responsabilizam pela logística de pessoas com deficiência e idosos para cruzar as fronteiras em busca dos países europeus na condição de refugiados”, explica a pesquisadora. O contexto de guerra reforça padrões e papéis sociais associados às mulheres, com a função do cuidado.
A permanência do estado de guerra nos países envolvidos representa um retrocesso para a busca pela igualdade de gênero. “Esse atraso vai recair sobre todas. Agora, as mulheres estão buscando, acima de tudo, sobreviver”, pondera Volha. Além de impor às mulheres um maior volume de afazeres domésticos e atividades relacionadas ao cuidados, o confronto impõe consequências econômicas imediatas aos países envolvidos. “Belarus e Rússia sofrem os impactos das sanções aplicadas pelo Ocidente, e o ônus recai sobre as mulheres e sobre os filhos”, afirma a ativista. Após o anúncio das represálias econômicas contra a Rússia, a psicóloga e professora Alina também acredita que a precarização afete mais as mulheres.
“Na Rússia, muitas famílias são separadas, e as mulheres têm de sustentar tudo sozinhas. A economia já acabou, as transações bancárias também pararam, a degradação vai ser natural e tudo está acontecendo muito rápido.” Para os próximos meses, a tendência é que a grande maioria dos setores seja afetada pelas sanções, restando postos de trabalhos cada vez mais precarizados às mulheres.
Além da imposição mais acentuada do trabalho do cuidado, mulheres em situações de conflito sofrem violências físicas e simbólicas diariamente. “Essas são as maiores atrocidades e horrores da guerra”, diz Volha. “A vida da mulher é vista como descartável, por isso sofrem ataques e estupros de forma recorrente.” E não apenas os soldados são os autores das agressões. No sábado (5), o deputado estadual Arthur do Val (Podemos) enviou áudios a integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL) em um grupo privado em que fala que mulheres ucranianas são “fáceis porque são pobres”. As falas machistas e misóginas, alvo de críticas de políticos e personalidades, expõem a violência contra as mulheres em situações de guerra. Nesses contextos, os corpos femininos se transformam em espaços de disputa e alvo de violência física, verbal e simbólica.
Publicado na década de 1980, o livro A Guerra Não Tem Rosto de Mulher narra o dia a dia de mulheres que lutaram pela União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. A obra traz centenas de relatos de ex-combatentes que atuavam como enfermeiras, atiradoras, operadoras de canhões, cozinheiras, telegrafistas, lavadeiras e operadoras de tratores e, por meio de suas ocupações e percepções, constroi a própria narrativa sobre o confronto. 
Agora, mulheres russas e ucranianas enfrentam batalhas invisibilizadas todos os dias. “Onde está a história dessas mulheres que pedem a paz e lutam por ela?”, cobra Elena, que vê todos os dias amigos e amigas se curvarem ao medo dos conflitos e das decisões tomadas por homens.